A fim de evitar que queimem com os incêndios, equipe de voluntários trabalha na manutenção de pontes de madeira ao longo da rodovia Transpantaneira, que liga Poconé a Porto Jofre, em Mato Grosso. Até 29 de agosto, quatro pontes haviam queimado na região.
“O osso da falange, do dedo, já está exposto, tamanha a gravidade da queimadura. É tratável, mas precisa de um ambiente especializado porque isso pode espalhar para tendões, nervos. Se ela ficar aqui, vai acabar morrendo por causa da infecção, e será lento e muito doloroso”, alerta o veterinário, que mora em Betim (MG), a 24 horas de viagem dali.
Na manhã daquele dia, a equipe havia rodado por estradas e aceiros – trechos de mata abertos com escavadeiras para conter o avanço dos incêndios – distribuindo cochos com água e frutas em áreas secas, em uma tentativa de diminuir um pouco o tamanho do estrago feito em uma geração inteira de animais.
Geração perdida
Os relatos de choque com os incêndios e o clima se repetem a cada morador ouvido. “Nunca vi um fogo terrível desses. Enquanto lutava para não queimar a casa do vizinho, nos abrigamos nas margens do rio Cuiabá para não morrermos queimados”, conta o pescador Salvador de Campos Silva, morador da região desde que nasceu, há 57 anos. Já Benedito da Silva, 79 anos, um dos dois únicos seres humanos que ainda habitam a Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN) Sesc Pantanal, teve que ser retirado às pressas de sua casa. “O fogo pulou o rio Cuiabá e veio queimar aqui perto. Me falaram para sair antes que eu morresse”, conta o pantaneiro, cuja casa de barro, coberta com folhas de acuri, foi encharcada com água para não queimar, enquanto todos os poucos móveis dormiram dias à beira do rio.
Enquanto isso, Vinicius Correia, arrendatário de uma fazenda de gado, contabiliza o prejuízo. Com a falta de pasto, todo consumido pelo fogo, terá de gastar, nos próximos meses, R$ 900 por dia para impedir que os animais, já magros, morram. “É isso ou deixar eles com fome, com esse restinho de pasto ralo”, diz, apontando para um trecho onde há mais areia que grama.
Depois de colocar os móveis na beira do rio e encharcar o telhado de folhas de acuri com água, seu Benedito da Silva, o Dito Verde, 79 anos, deixou às pressas a casa onde vive desde os 15 dentro da RPPN Sesc Pantanal.
Seu Manuel Ambrósio, 84 anos, faz rapadura em sua propriedade no meio da RPPN Sesc Pantanal, em Mato Grosso. Ele é um dos dois últimos moradores na reserva, onde vive, sem luz elétrica e água encanada, desde 1972.
Andre Tuhronyi conversa no rádio com bombeiros que ficaram sem combustível no meio de um incêndio. Tuhronyi diz ter gasto R$ 18 mil para manter o fog longe de suas terras, às margens da Transpantaneira.
Gramíneas e arbustos renascem em até cinco anos, mas as florestas, os cambarais e a fauna levarão entre 20 e 30 anos para se recuperarem completamente, calcula Cátia Nunes da Cunha, professora aposentada da Universidade Federal de Mato Grosso e pesquisadora do
Centro de Pesquisas do Pantanal. “É difícil calcularmos ao certo com as poucas pesquisas que são financiadas, mas o ambiente levou mais de 30 anos para se recuperar do ciclo de estiagens e queimadas observadas na década de 1960”, comenta, lembrando um período em que os mais velhos temiam morrer de sede.
Nascida e criada em Poconé (MT), Nunes vem estudando, entre outros temas, as dinâmicas climáticas do Pantanal, e alerta para o risco deste ser o início de um longo período de secas, fruto de mudanças climáticas globais, que poderá resultar em incêndios ainda maiores. Utilizando registros da Marinha sobre o calado do rio Paraguai desde 1900, Nunes observou que, entre 1961 e 1973, o Pantanal passou por um longo período de secas, seguido por três décadas de alta umidade, o que alterou não apenas a economia da região, mas toda a paisagem.
“A partir da década de 1970, o Pantanal tem um declínio da pecuária extensiva em campos nativos, com o abandono e esvaziamento de fazendas de gado, ao mesmo tempo que espécies de arbusto de madeira leve, altamente inflamável, aproveitaram as inundações favoráveis a elas para se proliferar”, explica Nunes. “[Isso] acumulou muita biomassa, que agora vem servindo de combustível para os incêndios.”
Há dois anos, o Pantanal vem recebendo menos chuvas, até que 2020 registrou a maior seca em 47 anos, superando os números registrados na década de 1960. Mesmo o período chuvoso recebeu a metade das precipitações esperadas. Segundo ela, foi essa somatória de elementos – seca recorde, acúmulo de biomassa inflamável e ação humana – que resultou no maior incêndio já registrado no bioma. “Temos que lembrar que no Pantanal não há, normalmente, incidência de fogo espontâneo no inverno”, destaca. “Além dos incêndios causados pelo homem, há outras modificações como o represamento dos rios que inundam o Pantanal e a destruição de suas matas ciliares nas cabeceiras, que tornam toda a região mais seca e quente.” Apesar de conhecido pela água – rios, lagoas e alagados –, o bioma não possui nascentes. Como uma enorme banheira, a planície apenas recebe as águas dos rios que brotam nos planaltos que a circundam.